Autor e fotos: Tales Azzi –
O litoral norte paulista, entre São Sebastião e Ubatuba, tem cerca de 200 praias. Apesar da certa proximidade com a maior cidade do País (a distância entre São Paulo e São Sebastião é de 205 km) e da grande urbanização dos dois municípios à beira-mar, muitas dessas praias ainda permanecem selvagens e preservadas. Parece difícil acreditar, mas quem pisa na areia da Praia Brava de Boiçucanga, em São Sebastião, a pouco mais de um par de horas da capital paulista, costuma ficar bem surpreso ao saber que essa praia está a cerca de 4 km do núcleo urbano e da área comercial mais próxima.
A Brava de Boiçucanga fica escondida em meio a costões verdejantes, entre Boiçucanga e Maresias, duas faixas de areia que costumam lotar em feriadões e ganhar irritantes engarrafamentos. Mesmo no meio da muvuca, só se chega à Brava depois de uma hora caminhando em trilha, ou pegando um barco-táxi. A recompensa para quem encara o caminho, cheio de subidas e descidas, é ter um incrível vislumbre da natureza em seu estado original, o que vale muitíssimo a pena. As montanhas cobertas por mata atlântica cercam toda a praia, que tem areia fofa e ondas fortes. Não há casas, bares nem construção alguma por ali. Os visitantes mais prováveis são pescadores ou um e outro surfista de fim de semana.
Já em Ubatuba, dá para sair da Praia do Félix, que é longa, reta e tomada por um condomínio, caminhar 20 minutos por uma trilha na mata e desembocar numa prainha deserta, onde a areia é recoberta por uma camada de conchas. Na maré baixa, esse singelo cenário, que faz jus ao nome – Praia das Conchas –, ganha bem-vindos poços de água entre as pedras.
Com base nesses exemplos, é perfeitamente possível sair de manhã da capital paulista e, antes mesmo do almoço, já estar caminhando numa praia vazia, diante do mar verde-cristalino, seguido apenas por suas próprias pegadas. O que não deixa de ser surpreendente para um litoral há décadas cobiçado por empreendimentos imobiliários.
A preservação de alguns trechos do litoral norte deve-se, primeiramente, à geografia peculiar da região. As montanhas da Serra do Mar nesse pedaço da costa avançam até a beira do mar, formando inacessíveis enseadas e penínsulas de terreno íngreme.
Muitas praias ficam na ponta dessas penínsulas, longe do asfalto da Rodovia Rio-Santos e sem estradas de acesso. Outras, ainda que fiquem coladas à rodovia, são tão escondidas pelos morros que quem passa de carro não as vê, como ocorre na Brava do Guaecá, em São Sebastião, e na Praia do Alto, em Ubatuba.
Nem o boom imobiliário a partir da abertura da Rio-Santos, nos anos de 1970, e a expansão dos condomínios de alto padrão – que tomaram conta de diversas praias, como a das Calhetas, em São Sebastião – foram capazes de urbanizar todo esse recortado litoral.
A preservação consolidou-se na última década, quando diversas praias foram anexadas à área do Parque Estadual da Serra do Mar, uma reserva ambiental de 300 mil hectares, dona de uma das maiores extensões de mata atlântica do Brasil e onde novas construções estão proibidas. Em Ubatuba, o parque se estende por 47 mil hectares, área que responde por boa parte da costa norte do município, onde está a maioria das praias desertas e semidesertas da região.
O urbano e o primitivo
A quantidade de praias em Ubatuba impressiona: são 83, das quais pelo menos uma dúzia é selvagem, incluindo as que existem nas ilhas, como a Anchieta, a das Couves e do Promirim.
Como o município tem 120 km de costa, a média é de uma nova praia a cada 1,5 km. Em alguns trechos, há até mais faixas de areia distintas em tal espaço, pois muitas são minúsculas e coladas umas às outras. Ainda assim, costumam ser completamente diferentes entre si.
Para o turista, é uma surpresa e tanto sair de um lugar sem graça e muvucado como Praia Grande, à beira da Rio-Santos, dirigir 15 minutos por uma estrada de terra, caminhar cinco minutos por uma trilha e chegar num pequeno paraíso chamado Praia do Cedrinho. Apesar de ficar perto do centro da cidade, ali não costuma haver mais do que um ou outro cliente no Bar do Zeca e meia dúzia de pescadores cuidando das canoas e redes.
Em Ubatuba é assim: uma simples trilha separa o urbano do primitivo. O que leva a perguntar por que os turistas preferem se amontoar em praias lotadas, como Maranduba, Toninhas ou a própria Praia Grande, e ignoram solenemente as mais bonitas e sossegadas. Pensando bem, é melhor assim.
No litoral sul, foram as penínsulas de difícil acesso que mantiveram muitas praias intocadas até hoje. É o caso, por exemplo, da Praia do Cedro, acessada apenas por uma trilha fácil, feita em cerca de uma hora, que começa na Praia da Lagoinha, urbanizada e bem na beira da estrada.
No caminho que leva ao Cedro, passa-se por outras duas praias muito interessantes, a do Bonete e a Grande do Bonete, esta última com uma comunidade de pescadores que parece desprezar os confortos da vida moderna. Não existe ruas na vila, já que não há estrada até lá, só caminhos de areia, e a luz elétrica é à base de gerador.
O visitante que chega ali deve perguntar por dona Lurdes, do Chichico’s Bar, que prepara o “azul-marinho”, prato típico caiçara, uma espécie de moqueca que leva banana nanica verde. Para abrir o apetite, Lurdes serve o delicioso licor que ela mesma prepara e chama de “concertada”, feito com pinga, mel, canela, açúcar queimado e erva-doce.
O trecho norte é o lado mais verde de Ubatuba, onde as matas estão protegidas pelas leis ambientais do Parque Estadual da Serra do Mar. Ali estão praias selvagens como a do Lúcio, a Brava da Almada e a Brava do Camburi, onde só se chega por trilhas e que não têm nenhuma infraestrutura – justamente por isso, pouca gente vai. Há também locais à beira-mar para chegar de carro, como as praias do Alto, da Puruba e da Fazenda, que só não são completamente desertas porque há uns poucos quiosques servindo bebidas e porções em mesas sob as amendoeiras. E isso só na alta temporada ou feriadões, já que, no resto do ano, as barracas não abrem porque não há freguesia.
Não bastassem o isolamento e o sossego, cada um desses pontos tem atrativos especiais que os diferenciam. A Praia da Puruba, por exemplo, é completamente isolada por um rio. O carro fica numa margem e é preciso atravessar de canoa ou caminhando com a água na altura da cintura.
Os que se aventuram rumo à Brava do Camburi passam antes por Camburi, última faixa de areia do litoral paulista, na divisa com o Rio de Janeiro. Lá está uma vila de pescadores, além de cachoeiras que ficam tão perto da praia que, em poucos minutos, o visitante sai do mar e já está debaixo de uma cascata no meio da mata.
Um problema para quem se dispuser a explorar os recantos intocados de Ubatuba é encarar as estradas esburacadas que dão acesso ao litoral norte. Em compensação, todas as praias citadas nesta reportagem são bem fáceis de encontrar, uma vez que estão indicadas nas placas ao longo da Rio-Santos.
Outro desafio é suportar os borrachudos, ainda mais vorazes nas praias desertas porque não recebem o tratamento de controle biológico dos mosquitos realizado pela prefeitura. Assim, os esquadrões sanguinários de borrachudos são implacáveis nessas praias pouco turísticas. É o caso da Puruba, onde o problema se acentua por causa da proximidade de um rio, que, por ser limpo, torna-se o hábitat preferido para os borrachudos se reproduzirem.
Ali, o Jorge, dono da única barraca do pedaço, na qual trabalha com a mulher Elines e a filha Jucilene, usam o tradicional método caiçara contra os borrachudos: passam óleo de cozinha nas pernas e braços. Resultado: quando o mosquito encosta no corpo com óleo, ele gruda e não consegue mais voar. “Só não dá para ficar andando no sol, se não frita a pele”, diz Jorge. No caso dos turistas, basta usar repelente sem economia para passar o dia inteiro sem se incomodar.
Quem encara esses percalços e não desiste da procura tem recompensas valiosas no litoral norte paulista: quase sempre uma praia inteira e preservada só para si. É difícil acreditar que lugares assim continuem existindo, ainda mais a uma distância relativamente pequena da maior metrópole do País.
Esse trecho foi retirado da revista Viaje Mais, seção Brasil, edição 141.