Autor: Carlos Costa –
Shangri-lá, a terra fictícia descrita pelo britânico James Hilton no romance Horizonte Perdido, de 1933, além de resultado de um trabalho caprichoso da natureza, era um lugar onde se vivia em um estado de felicidade e bem-estar permanentes. A velhice demorava a atingir o corpo e a paz não era perturbada pelos males do mundo civilizado. Não é coincidência que essa sociedade utópica ficasse nas montanhas do Tibete, onde, embora a conjuntura política esteja longe de qualquer utopia, o cenário criado pela Cordilheira do Himalaia conserva até hoje uma atmosfera de paraíso intocado.
Mas conhecer essa região (reclamada pela China e, em luta pela independência) não é tarefa para iniciantes. Essa é uma viagem para quem já percorreu destinos mais conhecidos e agora procura uma experiência inusitada, traduzida em uma longa viagem até a Ásia Central, um embate constante com os efeitos da altitude sobre o corpo e sucessivas experimentações com a culinária local.
A ousadia vale a pena: nesse território na ponta oeste da China, o visitante é apresentado a uma cultura rica, a uma história milenar e a cenários majestosos, seja graças à arquitetura dos palácios e templos ou à beleza das paisagens naturais.
No altiplano tibetano, estão as nascentes de alguns dos rios mais importantes da Ásia, como o Azul (Yangtzé, o maior de todos), o Amarelo (Huang He), o Indo (que desemboca no Paquistão) e o Ganges, que recortam o sem-fim de montanhas da região. Um cenário impressionante, preservado graças à cultura de respeito ao meio ambiente, que vem dos tempos da unificação das diversas tribos por Songtsan Gampo, o fundador do Tibete unificado.
A paisagem é coroada pela simpatia dos tibetanos, um povo de pele morena, curtida pelo sol, que, inesperadamente, recebe os brasileiros ainda com a lembrança de personagens de novelas, como a “Isôra” (como chamam a escrava Isaura, vivida por Lucélia Santos), e do futebol: é comum encontrar à venda chapéus e camisas com a inscrição Ronaldiño, na grafia espanhola mesmo.
Rotas e preparativos
Chamado de “teto do mundo”, o Tibete tem altitude média acima de 4.000 metros e as mais altas montanhas do planeta, crédito da localização em plena Cordilheira do Himalaia, conglomerado de mais de uma centena de picos, trinta deles mais de 7.300 m acima do nível do mar. Nessas alturas, se destaca o objeto de desejo dos montanhistas mais experimentados: o Everest, com o cume a 8.848 m acima do nível do mar, na fronteira com o Nepal. Justamente pela altitude elevada, a viagem exige cuidados e preparação prévia – como a ingestão de remédios antes da chegada para evitar a hipóxia, estado de baixo teor de oxigênio no organismo.
A última parada na China antes de seguir para o Tibete é geralmente em Chengdu, a capital de Sichuan, a mais povoada das províncias chinesas, famosa por sua culinária picante e seu estilo festeiro. Com cerca de 8 milhões de habitantes, Chengdu tem uma história que remonta 2 mil anos e hoje é um dos mais importantes centros econômicos do país. Da cidade partem voos diários para Lhasa, a capital tibetana, ou para a simpática Nyingchi, 400 km a leste de Lhasa. Nos dois casos, o percurso de avião dura pouco mais de três horas.
Preferi não seguir a cartilha: comecei a viagem em Nyingchi e viajei de van até Lhasa, um trecho de 403 km que atravessa o Tibete de leste a oeste. O caminho entre uma cidade e outra é uma linha reta pela rodovia nacional G318, especialmente movimentada entre julho e agosto, alto verão por lá. O trajeto da rodovia, que acompanha as corredeiras do Rio Ba, também deixa para trás povoados, templos de pedra e paisagens rurais.
Há dez anos, o Tibete recebia pouco menos de mil visitantes por ano. Desde a abertura do território ao turismo, em 2011, cerca de 8 milhões de pessoas passaram a visitar a região anualmente – na ponta do lápis, são quase 3 milhões a mais que o número de visitantes que o Brasil recebe no mesmo período. Mas a maioria é chinesa, de províncias próximas.
O movimento que o verão traz à estrada não afasta os animais que a visitam: porcos e cabritos selvagens são vistos pelo caminho, pássaros em revoada e, sobretudo, o onipresente iaque, um bovino de pelagem longa e espessa, adequada ao rigoroso inverno local. O animal é um dos símbolos tibetanos e elemento fundamental na alimentação, quer pela carne (geralmente tratada como charque e consumida em tiras) ou pelo leite (que rende densos iogurtes; um queijo que é consumido em nacos duros; e a quase onipresente manteiga, usada na mistura com chá e leite). Essa manteiga ainda abastece lamparinas e estrutura velas, que são vistas nos muitos templos da região, impregnando o ar com um aroma adocicado. E ainda há o pelo do animal, matéria-prima para vestuário ante o rigoroso frio tibetano.
Suíça tibetana
Em Nyingchi, 159 mil habitantes, o ponto de partida da viagem, vale visitar apenas pelo lugar onde a cidade nasceu. Nesse trecho do sudeste asiático, o relevo se dobra em montanhas, alonga-se em vales e desaparece em cânions profundos. Rios abastecidos por água de degelo correm pelas encostas das montanhas, e florestas e pastagens crescem alimentadas por essa irrigação constante.
Esse visual alpino rendeu à região o apelido de “Suíça tibetana”, e Nyingchi, de fato, não faz feio na comparação. Isso fica óbvio em um passeio pela Floresta Lulang, que alterna grandes extensões de mata fechada de ciprestes e pinheiros com trechos de gramado até as canelas, onde as azaleias crescem como num jardim a céu aberto. Um mirante construído a 3.700 m de altitude mostra esse panorama do alto e revela a teia de riachos e rios que passa por ali.
Maior rio de altitude do mundo, o Yarlung Tsangpo não deve ser contemplado só de longe. E a grande razão disso é conhecer seus cânions. Em alguns trechos largo e vagaroso a ponto de permitir travessias de balsa e barco, o Yarlung guarda o maior cânion do mundo, uma fenda de 6.000 m de profundidade e quase 500 km de extensão, onde a água desaparece nas entranhas da terra.
Quem busca se hospedar na cidade para explorar essas belezas naturais encontra bons hotéis, como o Songlin (Shuangyong Road, 25, em Bayi), e o Shang Ba La (Qizheng Road, 50). Também se come bem nos restaurantes da região. O prato típico é o “pote de pedra”, sopa de frango com ervas diversas e cogumelos selvagens, abundantes na região. Servida na vasilha de pedra, que mantém o calor, é de uma delícia austera.
Vilarejos
De Nyingchi, a viagem segue pela rodovia G318, e as belezas naturais desfilam à beira da estrada. Entre elas, o monte Nienchen Tangla, cuja grandiosidade o apelido “Mila” esconde.
Um dos picos mais altos da rota, ele equilibra um mirante a uma altitude de 5.013 m, que merece ser visitado – a passos lentos, já que nesse ponto a altitude pode castigar o corpo com fadiga e náusea. Essa é uma parada pontual. Um desvio rápido na rota e a estrada logo chama o visitante de volta. Pelos próximos quilômetros, os vilarejos irão dominar a paisagem.
Nyingchi é uma grande cidade frente aos povoados que sucedem ao longo da via. O que não significa que sejam menos interessantes. Gong Zhong é prova disso. Ali, a visita à residência do chefe da aldeia em si vale a parada. Sua esposa, a matriarca Cì Rén Ma Bái, ou Lótus de Longa Vida, poucas vezes sai da casa de muitas salas, sofás e tapetes, em que se destaca um pequeno oratório no andar de cima.
É apenas nos dias curtos de inverno que ela deixa o lar uma vez ou outra para orar num dos imponentes templos de Lhasa, onde vive a filha. Mas, inesperadamente, o Brasil não lhe é completamente estranho, já que, como milhões de chineses, ela acompanhou as peripécias da “Isôra”, a Escrava Isaura.
Esse trecho foi retirado da revista Viaje Mais, seção Exótico, edição 141.