Os cardápios e a língua portuguesa

Uma das coisas mais divertidas de qualquer viagem a Portugal é a hora da refeição. E não só por causa do bacalhau à brás, do polvo à lagareiro, do pastel de nata e das outras delícias da culinária portuguesa. Mas também porque é à mesa dos restaurantes que se tem um curioso embate com a língua portuguesa. Em um restaurante lusitano você é até capaz de duvidar se realmente entende o próprio idioma.

O primeiro desafio é chamar o garçom, que lá não se chama garçom, mas “empregado de mesa”. Mas não diante dizer, “Ô, psiu, empregado de mesa!”. Soa estranho demais, até para eles. Se observar com atenção vai de descobrir a maneira tipicamente lusitana de chamar o garçom. Primeiro ergue-se o dedo indicador e, com a voz firme, diz: “se faz favor”. Pronuncia-se, “se faz favoire”. E assim o milagre acontece e um cardápio se materializa na sua frente. Mas aí surge outra tarefa complicada: entendê-lo. O que seriam gambas ao tamboril? Ou então alheiras? Almêijoas? Picapau? Sapateira?

Na minha primeira viagem à Lisboa, eu não conseguia entender quase nada do cardápio. Tentei ignorá-lo quando fui à Cervejaria Trindade, um tradicional restaurante da cidade. Perguntei ao garçom qual era a especialidade da casa. O que ele me respondeu: “A especialidade é tudo o que está no cardápio, pois”. Não teve jeito, tive que encarar os cardápios lusitanos, mas não sem recorrer à simpatia dos garçons, que me explicaram cada um dos pratos. Para não esquecer depois, anotei tudo em um caderno e criei, com os passar dos dias, uma espécie de dicionário pessoal de comida portuguesa. Foi assim que descobri que “água lisa” significa sem gás. “Bica” é café expresso. “Fiambre” é presunto. E que muitos pratos têm apenas uma inversão de palavras, como em “carnes de ensopado”, que é, naturalmente, um ensopado de carne; ou em “javali de churrasco”, que quer dizer churrasco de javali.

Na Rua Garret, no Chiado, encontrei uma pastelaria, que não vendia pastéis, mas sim doces, já que, em Portugal, pastelarias são docerias. Entrei no estabelecimento e dei de cara com uma vitrine que era uma espécie de mostruário da confeitaria lusitana. Lá estavam a “encharcada”, o “toucinho do céu”, o “diário de dona inês”, “ovo do paraíso”, “jesuíta”… Perguntei à moça do balcão como seria a “coroa da abadessa”, mas ela, com a maior cara de saco cheio já que deve ouvir perguntas semelhantes o dia inteiro, resumiu: “os doces são feitos de ovos e açúcar”. Tudo bem, arrisquei assim mesmo, afinal, a chance de ser delicioso sempre é enorme.

Já em Belém, fui comer o pastel de nata considerado o melhor da cidade. Sentei em uma mesa e fiz o pedido: “se faz favor, três pasteis de nata”. O garçom respondeu: “nós aqui não vendemos pasteis de nata, apenas pastel de belém, pois essa é a Fábrica dos Pastéis de Belém”. Claro, eu é que não li na fachada. A casa patenteou o nome do doce, que todo o resto do país chama apenas de pastel de nata.

A propósito: Picapau é carne cortada em tiras. Sapateira é caranguejo. Almêijoas são vôngole. Alheiras é uma espécie de linguiça com recheio de carne e pão.

Por Tales Azzi

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